Se os sulistas que acreditavam na Bíblia tivessem seguido o código legal de Israel, a escravidão antes da Guerra Civil não teria existido ou teria sido bem mais branda.
Por Paul Copan
Harriet Beecher Stowe (1811–96) é a famosa autora de Uncle Tom’s Cabin (A Cabana do Pai Tomás). Quando Abraham Lincoln encontrou com ela em sua visita a Casa Branca, ele propositalmente disse “Então você é a mulher que escreveu o livro que começou essa grande guerra!” Stowe descreveu a natureza da escravidão antebellum (pré-Guerra Civil): “O poder legal do mestre chega a um absoluto nepotismo sobre corpo e alma,” e “não existe proteção para a vida do escravo.”1
Quando os cristão e não cristão leem sobre escravos ou escravidão em Israel, muitas vezes eles pensam no modelo de escravidão antebellum, com o seu tráfico de escravos e crueldades. Isso é uma percepção errada e muitos – incluindo os Novos Ateus – compraram essa percepção distorcida. Sam Harris escreve que escravos são seres humanos que são capazes de sofrer e de serem felizes. Ainda assim, o Velho Testamento os trata como “equipamento de fazenda”, o que é “patentemente ruim.”2
Nesse e em dois artigos consecutivos, eu vou abordar a escravidão nas Escrituras. Nos dois primeiros artigos eu vou focar na escravidão no Velho Testamento. O terceiro irá abordar a escravidão no Novo Testamento. Para uma discussão mais detalhada, leia meu livro Is God a Moral Monster? (Baker, January 2011).
A servidão hebreia como servidão por dívida
Nós devemos comparar a servidão por dívida hebreia (muitas traduções convertem esse termo como “escravidão”) mais como empregos de aprendizes para pagar dívidas – parecido com a servidão de débito durante a fundação dos Estados Unidos quando as pessoas trabalhavam aproximadamente sete anos para pagar o débito de suas passagens para o Novo Mundo. Após isso eles se tornavam livres.
Na maioria dos casos, servidão era mais como um empregado que mora na mesma casa, temporariamente incorporado com os empregados da casa. Mesmo hoje, times trocam os jogadores com outros times que possuem um dono, e esses jogadores pertencem a uma rede. Esse tipo de linguagem dificilmente sugere escravidão, mas um contrato formal acordado que deve ser cumprido – como no Velho Testamento.3
Seja por colheitas ruins ou outros desastres, o débito tendia a vir até as famílias, não somente indivíduos. Alguém poderia voluntariamente entrar em um acordo contratual (“vender” a si mesmo) para trabalhar na casa de outra pessoa: “um de seus conterrâneos se tornar pobre e vender a si mesmo” (Levítico 25:47). Uma mulher ou uma criança poderia ser “vendida” para ajudar a sustentar a família que está passando por momentos econômicos difíceis – a não ser que um parente os “redima” (pague o seu débito). Eles seriam servos por dívida por seis anos.4 Uma família talvez tivesse que hipotecar sua terra até o ano do Jubileu a cada 50 anos.5
Nota: No Velho Testamento, os de fora não impunham servidão – como fazia o Sul antebellum.6 Mestres poderiam contratar servos “de ano a ano” e não deveriam “dominá-los com rigor” (Levítico 25:46,53). Ao invés de serem excluídos da sociedade israelita, os servos eram incorporados dentro dos lares israelitas.
O Velho Testamento proibia servidão inevitável por toda uma vida – a não ser que alguém amasse o seu amo e quisesse se mantar ligado a ele (Êxodo 21:5). Os mestres deveriam libertar seus servos a cada sétimo ano com todos as dívidas perdoadas (Levítico 25:35–43). O status legal de um escravo era único no Oriente Médio Antigo (OMA) – uma melhoria dramática em relação aos códigos legais do OMA: “o hebraico não tem vocabulário de escravidão, apenas de servidão.”7
A garantia de liberdade a cada sete anos para os servos israelitas era um controle ou regulação para prevenir o abuso e a institucionalização de tal posição. O ano da liberdade lembrava aos israelitas que a servidão induzida por pobreza não era um arranjo social ideal. Por outro lado, a servidão existia em Israel precisamente por a pobreza existia em Israel. Sem pobreza, sem servos em Israel. E se os servos viviam em Israel, era de forma voluntária (tipicamente induzido por pobreza – não de forma forçada.
A dignidade dos servos em Israel
As leis sobre servidão de Israel estavam preocupadas em controlar ou regular – não idealizar – um acordo de trabalho inferior. Os israelitas entravam em servidão voluntariamente – não de forma ideal. As intenções das leis de Israel era combater potenciais abusos, não institucionalizar a servidão. O Velho Testamento punia escravidão forçada com a morte. Uma vez que um mestre libertava um servo de suas obrigações, o antigo servo tinha o “status de cidadão completo e totalmente desimpedido”.8
A legislação do Velho Testamento buscava prevenir a servidão por dívida voluntária. Deus deu a legislação Mosaica para prevenir que o pobre entrasse, mesmo que temporariamente, em servidão voluntária por dívida. O pobre poderia colher dos cantos das colheitas ou pegar as frutas nas arvores após os períodos de colheita dos Israelitas (Levítico 19:9,10; 23:22; Deuteronômio 24:20,21; cp. Êxodo 23:10). Deus, também, ordenou que os israelitas emprestassem livremente para os pobres (Deuteronômio 15:7,8), e não deveriam cobrar juros deles (Êxodo 22:25; Levítico 25:36,37). E quando os pobres não podiam pagar por animais sacrificiais, eles podiam sacrificar animais menores, menos caros (Levítico 5:7,11). Além disso, o povo deveria cancelar automaticamente as dívidas a cada sete anos. E quando um mestre libertava um servo por dívida, ele deveria generosamente prover para ele – sem um “coração invejoso” (Deuteronômio 15:10). Resumindo: Deus não desejava que houvesse pobreza (ou servidão) em Israel (Deuteronômio 15:4). Portanto, as leis de servidão existiam para ajudar o pobre, não para prejudicá-los ou mante-los sob julgo.
Ao invés de relegar as leis de tratamento dos servos (“escravos”) para o final do código legal (comumente feito por outros código legais do OMA), o assunto está a frente e no centro de Êxodos 21. Pela primeira vez no OMA, a legislação de Deus requeria que se tratassem servos (“escravos”) como pessoas, não propriedades. Gênesis 1:26,27 afirma que todos os homens carregam a imagem de Deus. Jó afirma que tanto mestre quanto escravo saem do útero da mulher e são no final das contas iguais (Jó 31:13–15). Como um erudito afirma: “Nós temos na Bíblia a primeira apelação na literatura humana para tratar escravos como seres humanos por eles mesmos e não pelos melhores interesses de seus mestres.”9
As provisões memoráveis em Israel
Uma simples comparação das leis de Israel com outras do resto do OMA revela três diferenças notáveis. Se os sulistas que acreditam na Bíblia tivessem seguido essas provisões, a escravidão antes da Guerra Civil não teria existido ou teria sido bem mais branda.
1. :Leis Anti-Dano: Uma melhoria memorável das leis de Israel sobre outras leis do OMA é a liberação de servos machucados (Êxodo 21:26,27). Quando um empregador (“mestre”) acidentalmente feria o olho ou arrancava o dente de seu servo/empregado homem ou mulher, ele/ela deveria ser libertado. Deus não permitia abuso físico dos servos. Se um empregador disciplinando seu servo viesse a matá-lo, então o empregador (“mestre”) deveria ser morto por assassinato (Êxodo 21:20) — diferentemente dos outros códigos do OMA.10 De fato, o código babilônico de Hamurábi permitia que o mestre cortasse a orelha de seus escravo desobediente (¶282). Tipicamente nos códigos legais do OMA, mestres — não os escravos — eram financeiramente compensados. A Lei Mosaica, no entanto, tinha os mestres como legalmente responsáveis pelos seu tratamento para com seus servos - não somente com os servos de outras pessoas.
2. Leis Anti-Sequestro: Um outro aspecto único da Lei Mosaica é a condenação do sequestro de pessoas para vendê-las como escravas – um ato punido com morte (Êxodo 21:16; compare Deuteronômio 24:7). Sequestros, claramente, foi a maneira pela qual a escravidão antebellum ganhou força.
3. Leis Anti-Retorno: Diferentemente do Sul antebellum, Israel deveria oferecer um porto seguro para escravos fugitivos (Deuteronômio 23:15,16) — um grande contraste com a Lei de Escravos Fugitivos dos estados do sul. O código de Hamurábi exigia a pena de morte para aqueles que ajudassem os escravos fugitivos (¶16). Em outros casos menos severos — nas leis de Lipit-Ishtar (¶12), Eshunna (¶49-50), e Hititas (¶24) — fianças eram expedidas para quem protegesse um escravo fugitivo. Alguns afirmam que isso era uma melhoria. Bem, mais ou menos. Nesses cenários “melhorados”, o escravo ainda era propriedade; os acordos de extradição do OMA ainda requeriam que o escravo fosse retornado para o seu mestre. E não somente isso, o escravo retornaria para as condições difíceis que o incentivaram a fugir.11 Mesmo leis babilônicas melhoradas do primeiro milênio a.C. incluíam compensação para o dono (ou algo mais severo) pela proteção a escravos fugitivos. No entanto, o escravo quando retornava era desfigurado, incluindo o corte de orelhas ou marcação a ferro.12 Esse não é exatamente o tipo de melhoria para se espalhar publicamente.
O erudito em Velho Testamento Christopher Wright observa: Nenhuma outra lei do Oriente Médio antigo foi encontrada que tenha o mestre como responsável pelo tratamento de seus próprios escravos (exceto quando causa avarias ao escravo de outro mestre) e a outra lei praticamente universal sobre escravos que fugiam que deveriam ser devolvidos, com severas penas para aqueles que falhavam em cumprir tal lei.”13
Se o Sul tivesse seguido essas três leis claras de Êxodos e Deuteronômio, a escravidão não teria sido tão forte. E o mais importante, o tratamento dos servos (escravos) por Israel não encontrou paralelos no Oriente Médio Antigo.
Na próxima edição, eu vou abordar algumas das passagens sobre “escravidão” que mais “pegaram”.
PAUL COPAN, Ph.D., West Palm Beach, Florida, é professor e Pledger Family Chair de Filosofia e Ética na Palm Beach Atlantic University em West Palm Beach, Florida. Ele é autor e editor de um vasto número de livro, incluindo When God Goes to Starbucks (Quando Deus vai ao Starbucks), True for You, But Not for Me (Verdade para Você mas não para Mim), That’s Just Your Interpretation (Isso é só a Sua Interpretação), e Creation Out of Nothing (Criação a Partir do Nada). Ele também é presidente da Evangelical Philosophical Society (Sociedade Evangélica de Filosofia).
Notas
1. Harriet Beecher Stowe, A Key to Uncle Tom’s Cabin; Presenting the Facts and Documents Upon Which the Story Is Founded, Together With Corroborative Statements Verifying the Truth of the Work (Boston: John P. Jewett, 1853), I.10, 139.
2. Sam Harris, The End of Faith (New York: W.W. Norton, 2004), 18.
3. Douglas Stuart, Exodus (Nashville: B&H, 2009), 474,5.
4. From Tikva Frymer-Kenski “Anatolia and the Levant: Israel,” in A History of Ancient Near East Law, vol. 2, ed., Raymond Westbrook (Leiden: Brill, 2003).
5. See Gregory C. Chirichigno, Debt-Slavery in Israel and the Ancient Near East, JSOT Supplement Series 141(Sheffield: University of Sheffield Press, 1993), 351–54.
6. See Gordon Wenham, “Family in the Pentateuch,” in Family in the Bible, eds.Richard S. Hess and Daniel Carrol (Grand Rapids: Baker Academic, 2003), 21.
7. J.A. Motyer, The Message of Exodus (Downers Grove, Illinois: InterVarsity, 2005),239.
8. John I. Durham, Exodus (Waco, Tex.: Word1987), 321.
9. Muhammad A. Dandamayev, s.v. “Slavery (Old Testament),” in Anchor Bible Dictionary, vol. 6, ed. David Noel Freedman (New York: Doubleday, 1992).
10. See Christopher Wright, Old Testament Ethics and the People of God (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2006), 292.
11. ANE legal texts references are from William W. Hallo, ed., The Context of Scripture: Volume II: Monumental Inscriptions From the Biblical World (Leiden: Brill, 2003); Martha T. Roth, Law Collections From Mesopotamia and Asia Minor, 2nd ed. (Atlanta: Scholars Press, 1997). See also Elisabeth Meier Tetlow, Women, Crime, and Punishment in Ancient Law and Society: Volume 1: The Ancient Near East (New York: Continuum 2004).
12. Raymond Westbrook, ed., s.v. “Neo-Babylonian Period,” A History of Ancient Near Eastern Law, 2: 932.
13. Wright, Old Testament Ethics, 292.
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